Alerta necessário

De tempos em tempos o movimento espírita brasileiro é sacudido por polêmicas entre os adeptos do Espiritismo sobre temas que estão longe do objetivo principal da doutrina, que é a transformação moral das pessoas e da humanidade. Nada impede a nós, espíritas, de tratar de qualquer tema, mas seguindo uma regra geral muito útil: temas sobre os quais não temos uma resposta definitiva, que gerem polêmicas intermináveis, e que nada acrescentem ao objetivo moral da doutrina espírita, devem ser evitados, ou ao menos minimizados, pois são muito mais motivo de divisão do que de união, que deve caracterizar os espíritas, cientes que o exemplo fala por mil palavras.

O codificador Allan Kardec, prevendo o que poderia acontecer no futuro, publicou na edição da Revista Espírita de fevereiro de 1862, em resposta à mensagem de ano novo dos espíritas lioneses, texto de máxima importância com conselhos gerais aos espíritas, dos quais destacamos o seguinte parágrafo para nosso estudo:

Devo ainda vos chamar a atenção para outra tática de nossos adversários: a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua competência e que poderiam, com toda razão, despertar susceptibilidades e desconfianças. Também não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quanto disser respeito à política e às questões irritantes; nesse caso, as discussões não levarão a nada e apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém questionará a moral, quando ela for boa. Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial. Quando os homens forem melhores, as reformas sociais verdadeiramente úteis serão uma consequência natural. Trabalhando pelo progresso moral, assentareis os verdadeiros e mais sólidos fundamentos de todas as melhoras, deixando a Deus o cuidado de fazer que as coisas cheguem no devido tempo. No próprio interesse do Espiritismo, que ainda é jovem, mas que amadurece depressa, deveis opor uma firmeza inabalável aos que buscarem vos arrastar por um caminho perigoso”.

O que à época de Kardec acontecia de fora para dentro do movimento espírita, hoje acontece nas suas entranhas, em embates entre seus adeptos por ideias e assuntos que a nada levam, a não ser a debates infindáveis e inimizades, num flagrante contrassenso, pois a bandeira do Espiritismo é “fora da caridade não há salvação”, o que a boa lógica nos diz deva ser antes exercida entre os próprios espíritas, como exemplo de tolerância e fraternidade entre aqueles que abraçam seus princípios e procuram colocá-los em prática.

Entre as polêmicas irritantes que pululam no movimento espírita brasileiro destacam-se aquelas que querem identificar neste e naquele a reencarnação de famosos personagens da história humana, como se todos esses personagens, por alguma ordem divina desconhecida, tivessem que se tornar brasileiros e espíritas. Ora, Deus não legisla por privilégios, que absolutamente o Brasil não os detêm, assim como nenhuma outra nação do mundo. Por qual motivo todos os revolucionários franceses, todos os filósofos gregos, todos os personagens europeus famosos de todos os tempos, teriam que reencarnar no Brasil e, ainda, serem espíritas? E se assim sucede, por que não somos, de todos os pontos de vista, melhores, e principalmente do ponto de vista moral?

Nesse debate reencarnatório infrutífero de querer localizar no tempo e espaço quem eu fui em encarnação passada, quem você foi em outra existência, alguns espíritas desavisados e demonstrando pouco conhecimento da própria doutrina que dizem esposar, afirmam que fulano ou fulana de destaque no movimento espírita brasileiro é a reencarnação não apenas de um personagem famoso, mas de vários personagens famosos, assim alguém poderia ter sido Sócrates, depois o apóstolo Pedro, em seguida Francisco de Assis, até culminar na atual personalidade, conhecida apenas dos espíritas brasileiros, o que não deve ser muito lisonjeiro a esse espírito que tantos benefícios realizou para a humanidade, e que agora se circunscreve a ser conhecido de apenas uma parte da nossa população. Esse pensamento nem mesmo é lógico, mas sim uma tendência que ainda temos de querer santificar e endeusar as pessoas, principalmente os médiuns que por algum motivo se destaquem pelos seus serviços à causa da propagação do Espiritismo e do atendimento ao próximo, o que é totalmente desnecessário e pouco recomendado, podendo levar muitos a se perderem da humildade que deve caracterizá-los como intermediários dos desencarnados.

Outra questão que tem invadido o movimento espírita brasileiro como uma praga daninha, é a mistura da opinião pessoal político-ideológica com a doutrina espírita. Apressemo-nos em esclarecer que ninguém, pelo fato de ser espírita, é isento de sua personalidade e de suas ideias pessoais, todos temos o direito de exercer o livre arbítrio, mas que as ideias pessoais fiquem bem claras ao expressarmos uma opinião, pois não podemos falar em nome do Espiritismo utilizando ideias de cunho pessoal. Infelizmente essa mistura é o que mais temos visto nas redes sociais e, deixando-se levar pelo orgulho, muitos se digladiam através da internet por não aceitarem o que quer que seja que lhes contrarie o pensamento. Isso somente demonstra que não entenderam o cunho moral da doutrina espírita, que pede transformação, moderação, tolerância, compreensão, renúncia, solidariedade a todos os seus adeptos, e a não adeptos, e em todas as circunstâncias.

Ainda diante de questões inúteis em flagrante contradição com os princípios espíritas, e desdenhando-se as sábias recomendações dos Espíritos Superiores e de Allan Kardec, temos igualmente a publicação aleatória e sem nenhum critério de mensagens mediúnicas que mais aterrorizam as pessoas do que esclarecem e consolam, muitas delas colidindo frontalmente com os sólidos princípios que formam o Espiritismo. Para prevenir tais publicações, hoje tão facilitadas pelos meios digitais, é que insistiu Allan Kardec em seus livros e nas páginas da Revista Espírita, em solicitar que toda e qualquer comunicação de ordem espiritual via mediúnica deve ser criteriosamente analisada, passando pelos crivos da lógica, da razão, do bom senso e da universalidade do ensino dos espíritos. E vai mais longe: na dúvida, recomenda que a mensagem seja guardada para posterior averiguação. Mas qual, não é o que atualmente sucede, com verdadeira enxurrada de mensagens espirituais sendo disseminadas por todos os meios, propagando ideias perturbadoras e mesmo opostas aos princípios da doutrina, num verdadeiro desserviço à causa.

Não estamos aqui nos opondo a esta ou aquela pessoa, a esta ou aquela instituição. Estamos no terreno da discussão das ideias e dos princípios que formam a base e o edifício do Espiritismo. Podemos divergir nas ideias, nos pensamentos, nas interpretações, mas isso jamais deverá nos colocar no terreno da inimizade, do corte do relacionamento interpessoal, e muito menos provocar dissidências irreconciliáveis dentro do movimento espírita, pois o que deve sancionar o verdadeiro espírita é a fraternidade.

De tudo isso, devemos tirar proveitosa lição: o Espiritismo tem por finalidade a transformação moral da humanidade, o que somente pode acontecer com a transformação moral dos indivíduos. Isso será retardado enquanto estivermos com a atenção desviada para assuntos que nada têm a ver com as questões de ordem moral, enquanto estivermos defendendo pontos de vista pessoais, enquanto estivermos acomodando os princípios espíritas a interesses outros.

Fiquemos sempre com Allan Kardec em suas sábias palavras: “Procurai, no Espiritismo, aquilo que vos pode melhorar; eis o essencial”.

Referências

KARDEC, Allan. Revista Espírita. Fevereiro de 1862. Brasília: Feb, 2004.


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